Nesta
manhã (16/02/2012), enquanto levava meu filho para a escola, observei um
sujeito um tanto apressado entrar na contramão em local totalmente impróprio
para isto (estávamos frente a um cruzamento) e postar-se em minha frente, sobre
a faixa de pedestres, apenas para poder arrancar primeiro tão logo o semáforo
ficasse verde. Meu civilizadíssimo instinto de motorista levou-me
instantaneamente a um pensamento que não é raro neste tipo de situação e em
tantas outras que ocorrem quando um desses “malandros” da vida usa de sua
aguçada esperteza: fiquei dividido entre o desejo de possuir uma arma para
alvejar sua roda traseira ou que o simples acaso punisse seu desacato às leis
de trânsito com um pequeno acidente (eu nunca disse que era perfeito). Deste
momento de profunda maldade algo diferente me ocorreu. Hoje, amei aquele
sujeito e fiz uma breve prece pela sua felicidade, sem que isto fosse vinculado
ao seu aprendizado ou amadurecimento. Ou seja, orei para que ele fosse feliz,
independente de que viesse a perceber ou corrigir sua postura irregular.
Depois
desta experiência, segui o caminho para a escola e depois para casa repassando,
em minha mente, a lista dos meus inimigos. Existe uma máxima, proposta por
Jesus, O Nazareno, que nos convida a amar nossos inimigos. Isto ia de encontro
ao ¹ paradigma judeu vigente, “Olho por olho, dente por dente”. Esta nova
proposta trazida por Jesus ao seu povo remonta a uma doutrina mais antiga, pois
Sidarta Gautama (Shakyamuni), o Primeiro Buda Histórico, aproximadamente 500
anos antes da Era Cristã já havia chocado seus contemporâneos com o mesmo
convite. Este convite se torna complexo em nosso tempo, independente de sermos
cristãos ou budistas, pois fica a questão, “Quem é meu inimigo?”. Não estamos
sob o controle espiritual dos brâmanes tampouco sob o julgo do Império Romano.
Não temos exércitos com catapultas frente às muralhas de nossa cidade tampouco
há um membro do clã rival frente ao nosso portão aguardando-nos com espada
desembainhada. Quem é meu inimigo?
A
resposta a esta questão está no exercício espiritual que vivenciei nesta manhã
e que devemos refazer a cada instante do nosso cotidiano. Hoje, meu inimigo foi
um anônimo que “furou a fila” dos carros. Semana passada foi outro anônimo que
entrou em minha frente sem dar seta. Meu inimigo pode estar, inclusive, na
sutil presença de um colega de trabalho que eventualmente recebe o
reconhecimento de uma tarefa exercida por mim. Meu inimigo pode ser aquele
grande amigo que esqueceu do meu aniversário, um pai alcoólatra, uma mãe
opressora, um professor inflexível, um supervisor incoerente, um gestor de
visão limitada, aquele primo com o qual não falo há anos e nem me lembro mais
qual foi a causa da discórdia, etc. Todos estes são (ou se tornam), em cada
momento de minha vida, meus inimigos ². Simultaneamente, nenhum deles é um
inimigo, de fato. O verdadeiro inimigo reside em nosso coração. Em nossa
ignorância, independente de ser crônica ou momentânea. Nosso inimigo reside em
nossa inclinação à criar inimigos. Não é em vão que tantos mestres religiosos
insistam tanto no perdão. Não nos cabe perdoar a ofensa que recebemos. Nenhuma
ofensa, injúria ou agressão deve ser perdoada. Toda a postura inadequada deve
ser apresentada, discutida e transformada. Mas a ofensa e o ofensor são coisas
distintas. Todo o ofensor deve ser perdoado, assim como nosso hábito de
torná-lo “O Inimigo” deve ser reexaminado. Eu sei que isto não é fácil,
sobretudo quando consideramos a gravidade de determinadas ofensas. Eu mesmo já
exclamei, cheio de revolta e ironia, “Vai até a menina violentada e convida-a a
perdoar o estuprador!”. Mas se não estivermos sinceramente dispostos a realizar
este exercício, não seremos dignos daqueles que elegemos como mestres em nossas
vidas. Eu com Shakyamuni, você com Jesus. Se não nos tornamos nós mesmos budas
e nazarenos, jamais seremos capazes de compreender com clareza quem é o nosso
verdadeiro inimigo.
Notas:
¹ Espero não precisar explicar a
diferença de “de encontro a” e “ao encontro de”.
² Indico a leitura do texto "Desaforo"
Nenhum comentário:
Postar um comentário