O mundo contemporâneo não é religioso.
Grandes dúvidas existenciais do tipo "o que é a morte?", "há
algo depois dela?", "de onde veio a existência?", "Deus
existe?", etc. foram abandonadas. Interessa a próxima roupa, o próximo
cargo, a próxima transa, a próxima balada.
Embora as pessoas em geral tenham se
afastado das grandes perturbações do passado, "as pessoas em geral"
não é sinônimo de "todas as pessoas, sem exceção". Dialogo, portanto,
com as exceções. Dentre as grandes discussões metafísicas, a maior e mais
frequente é, parece-me, a discussão sobre a existência de Deus. Escolhi
"Deus" no lugar de "deuses" pelo fato do pêndulo balançar
quase sempre entre "O Deus cristão existe" e "o Deus cristão não
existe". Há pouco espaço para outras divindades, como se representassem um
nível inferior de crença, indigno de escrutínio.
Já disse em outra ocasião que a
existência de Deus é passível de prova, enquanto a inexistência não é. Convém
agora expandir este raciocínio:
·
O próximo nível da inferência "a existência de Deus é passível de
prova" é "a existência de (pelo menos) um deus é passível de
prova". Com isto deixo o raciocínio mais coerente e absolvo-me do crime de
ter desconsiderado outras religiões.
·
A inferência "a inexistência de Deus não é passível de prova"
não sofre upgrade, pois é inviolável desde que foi proposta. Convém apenas
tornar minúsculo o "D" da divindade.
·
Quando a revisão ora proposta me ocorreu pela primeira vez (sete minutos
atrás) pensei numa inferência intermediária, pela qual uma vez efetivada a
prova da existência de ao menos uma divindade a inferência seguinte seria
enfraquecida pela prova da inexistência das demais divindades. Isto não é
possível. A prova da existência de uma divindade não anula a possibilidade de
prova de qualquer outra, ainda que a primeira divindade viesse pessoalmente
ratificar que é única. Qualquer outra divindade permanece resguarda pela máxima
"a existência de um deus é passível de prova". A inferência "a inexistência
de deus não é passível de prova" permanece inviolável.
Retomei este assunto por ter prometido
fazê-lo numa reflexão anterior (ver Milagres
e Conquistas). Também o faço por tratar-se de tema recorrente nos diálogos
das pessoas de meu convívio. É importante perceber que eu, que infiro convictamente
que "a inexistência de deus não é passível de prova" não o estou
fazendo em defesa de alguma entidade ou religião em particular. Eu não acredito
em deuses nem em Deus, mas sou honesto ao reconhecer que é tolice procurar
suporte empírico ou lógico para o ateísmo.
Outra questão é a seguinte: somos programados
para fabricar deuses. Revestimos tudo de místico. Divinizamos com facilidade.
Em minha infância morava em um sobrado. O vão sob a escada que levava aos
quartos era a minha "garagem". Havia, porém, um problema. O lugar era
muito escuro e minha bicicleta vermelha ficava lá no fundo. Como superar isto?
Minha mãe não poderia ir comigo toda vez que eu quisesse a bicicleta. Meu pai
instalou luz anos mais tarde. Neste meio tempo, dei um rosto para as "trevas"
daquele ambiente. Dei-lhe nome ("Meu Amigo", mas poderia ter sido
"Abba"), e ia buscar minha bicicleta conversando com ele. Pela
relação de Temor, Respeito e Súplica, garantia não sofrer nenhum mal de sua
parte e ainda conquistava minha tão querida bicicleta. Fico feliz que isto só
tenha acontecido com um menino de sete anos com medo de escuro e que não se
repita com adultos. Fico feliz em constatar que não existem religiões baseadas
em Temor, Respeito e Súplica (não é?).
Dadas estas premissas, quero seguir ao
ponto chave, o qual aprendi no Budismo, mas o qual o Budismo não ensina (nenhum
texto budista ou pessoa budista com o mínimo de bom-senso ratificará minhas
afirmações). O Budismo não é uma religião de ateus. Talvez seja composta por
pessoas com mais fé que todos os teístas e ateus juntos. O budismo não nega a
existência de qualquer divindade (embora algumas escolas tenham um panteão
próprio). O Budismo apenas despertou para a irrelevância desta discussão. Ele
despertou para as máximas que acabo de propor sem tê-las enumerado. Assim como
há homens mais próximos da Iluminação e outros mais próximos do estado de
inferno, há seres (ou pode haver, e isto é passível de prova, mesmo que jamais
se efetive) em outros planos existenciais mais próximos do estado de Buda e há
(ou pode haver) seres mais próximos do estado de inferno. Você, se religioso,
pode chamar estes de demônios, aqueles de deuses e/ou anjos. Eu os chamo de
"seres em outros níveis existenciais mais ou menos engajados na mesma
busca por iluminação que eu", e sua existência é logicamente passível de
prova, ainda que jamais se efetive; sua inexistência não é passível de prova, e
isto é eternamente inviolável.
Ser Budista, para mim, é abandonar
qualquer busca por ou discussão sobre divindades. Minha busca é pela
manifestação de meu potencial máximo e isto é Estado de Buda. Lembra quando
defendi que "a existência de (pelo menos) um deus é passível de
prova"? Para tanto basta que algum deus eventualmente existente decida se
apresentar abertamente. Se este evento ocorresse, haveria euforia na religião
que o anunciava, caos e ruína nas demais. Eu, porém, não me converteria. Isto
não é mais possível. Eu saudaria a divindade reverentemente, agradeceria sua
visita e seguiria minha busca, na qual todo homem, demônio ou divindade será
sempre bem vindo.
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