Outro dia direcionei este texto para
um amigo. Na ausência de retorno, pareceu-me melhor lança-lo aqui, para olhares
de “amigos anônimos”. Quem sabe por aqui possamos construir um diálogo. O texto
começava assim “Nosso mundo é totalmente edificado sobre as mais absurdas
vaidades e futilidades, todas revestidas da mais profunda urgência e
imprescindibilidade. Isto me perturba.”
“(…) estava saindo de uma reunião de
Ouvidorias, realizada por vídeo conferência entre meu chefe (que é ouvidor
desta empresa e presidente de sei lá quantos conselhos de ouvidores) e outros
ouvidores no Rio de Janeiro. Um desfile de egos e ilusões que me dava até falta
de ar. Não são pessoas más, mas são pessoas enganas em uma sociedade
equivocada. Discutiam e rediscutiam decisões sobre procedimentos de Ouvidorias
como se a existência de suas áreas e cargos fosse imprescindível para o bom
funcionamento das respectivas empresas e, até mesmo, da sociedade. Eu só
pensava no Raul (“E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial que
está contribuindo com sua parte para nosso belo quadro social…”).
Multiplicam-se empresas para
fornecer produtos e serviços desnecessários, e nestas multiplicam-se áreas e
cargos para garantir o fornecimento dos tais produtos e serviços com lucro
crescente. Este lucro, distribuído sob a forma de salário, investimentos e
dividendos, é utilizado pelos indivíduos recebedores para adquirir outros
produtos e serviços desnecessários, produzidos em empresas prescindíveis com
suas intermináveis áreas e cargos irrelevantes. Depois as pessoas comemoram o
carro novo, agradecem a deus pela “promoção” no trabalho, comemoram. Com qual propósito?
Não precisamos de carros, TV’s, partidas de futebol e embates políticos.
O senhor é capaz de imaginar onde
estaria esta sociedade sem estas distrações?
Será mesmo que sou o único que vê
que tudo o que é mais desejado é, justamente, o responsável por todos os males
dos quais nos queixamos? Desigualdade, criminalidade, miséria, etc.
Qual a finalidade de uma Ouvidoria,
se a empresa fosse feita de pessoas verdadeiramente dedicadas ao bem do
cliente? Qual a necessidade de um plano de saúde se a gestão pública fosse
realmente voltada ao bem da população? Pense em um mundo no qual não houvesse
quem cobiçasse o celular, tênis ou carro do próximo. Haveria polícia? Pense em
cada homem que hoje é policial ou membro das forças armadas com uma vida
dedicada à pratica docente, às artes ou à medicina (o mundo estaria todo
edificado sobre este tripé, pois nada mais seria necessário). O homem que foi
para o campo não foi porque só lhe restou esta opção, nem porque foi ali que
nasceu e não teve oportunidade de conhecer outro mundo. O homem do campo está
lá porque ama o campo. Porque se alegra ao saber que toda uma civilização é
sustentada pela terra que ele trabalhou. As pontes, que não teriam como nem
porque serem superfaturadas, conectariam vidas apaixonadas pelo bem geral.
Ao
adoecer você não passaria horas esperando atendimento em um hospital público.
Haveria três ou quatro médicos morando na sua rua. É uma coisa mais séria?
Precisa de local e equipamento adequado? Há meia dúzia de postos de saúde e
dois hospitais só no seu bairro. Imagine um mundo em que o conhecimento
estivesse ao alcance de todos, em vez de restrito aos filhos dos pais que podem
pagar as melhores escolas. Reflita sobre quantos gênios nós já perdemos em
canaviais, callcenters, mangues, delegacias, ouvidorias, etc. Imagine o que
eles teriam criado, se tivessem tido tempo para viver as respectivas
criatividades. Tempo que enterraram em trabalhos absurdos e desnecessários
lutando pra sobreviver enquanto construíam a riqueza de terceiros que nunca nem
saberão seus nomes. Eu não consigo entender como a comunidade humana não
realiza este “Estado de espírito”. Eu poderia viver vidas inteiras neste mundo e
não entenderia esta espécie. Não falo de comunismo. Não quero um mundo
vermelho. Quero um mundo no qual não haja motivo para riqueza. NÃO HÁ MOTIVO
PARA RIQUEZA! Falo em um mundo em que a escolha do carro não foi pelo que era
possível pagar, pois qualquer carro seria tão barato quanto é baixo o meu
salário. Mas veja só, o carro não é necessário. Pois o status que se poderia
esperar dele é desprezível. Neste mundo o carro serviria apenas para ir à algum
lugar. Dá para imaginar? E se não for tão longe vamos à pé, não importa o
horário. Por que alguém precisaria me roubar? As ruas seriam alamedas
arborizadas e em caso de chuva eu entraria na primeira casa que visse. Estaria
aberta e seu morador, mesmo que um estranho, me ofereceria um café até que a
chuva terminasse. Descobriríamos que apreciamos os mesmos autores mas temos
gostos musicais divergentes. Passearíamos pela rua a pé, não importa o horário.
Não haveria motivo para temer a noite. Apreciaríamos as estrelas. Viagens
longas seriam de metrô ou trem, cujas linhas teriam sido distribuídas de forma
extremamente eficiente, construídas com qualidade e sem propinas. Não haveria
motivo para greve. Rudolf Diesel não
teria sido assassinado e a Tesla Motor’s seria conhecida internacionalmente.¹
Quando vejo o mundo descrito acima e o
emparelho ao mundo atual, sei que é utópico. Ao mesmo tempo, ele é tão
perturbadoramente lógico que, para mim, utópico é o mundo em que vivemos.”
Nota:
¹
O parágrafo em itálico foi aportado hoje. Não constava no texto original.
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