Em
11/08/2014 registrei uma nota para desenvolvimento posterior. Escrevi
"Paradoxo do Amigo Imaginário". Não retornei à mesma até hoje, mais de
dois anos depois. Parei para "fuçar" no Evernote e tropecei nesta nota.
Preciso
confessar que não sei mais que conjunto de sentimentos e ideais
inspiraram tal nota, só sei que acreditava que este título bastaria para
me fazer retomar tudo aquilo. Uma mensagem codificada ao Marcelo do
futuro (este que vos fala neste momento) que eu não sei decodificar.
Tudo que me resta é tatear entre os sentidos e ideais do momento atual e
esperar que nelas existam ao menos fragmentos da ideia original.
Comprometo-me a emitir um novo texto caso ela decida retornar.
Neste
momento peculiar o "Paradoxo do Amigo Imaginário" me leva a pensar que o
próprio Marcelo é um amigo Imaginário (nota: acabo de ver um lampejo da
ideia original. Talvez seja possível transcreve-la). Não qualquer
Marcelo. Neste momento Marcelo de agosto de 2014 é um amigo Imaginário
meu com o qual estou tentando reatar o diálogo. De algum modo o Marcelo
de 2014 também esperava poder se comunicar com um Marcelo futuro, só não
sabia que seria um futuro tão distante (certamente esperava voltar à
nota na mesma semana). Ora, um amigo Imaginário é, parece-me, um recurso
intelectual para a) organizar ideias e b) expurgar temores. Do ponto de
vista da organização de ideias note que o ato de pensar é uma operação
linguística e sonora. Obviamente não é um evento sonoro real; não há
agitação no ar nem perturbação em seus tímpanos, tampouco a sequência
sináptica dali até o ponto no qual seu cérebro construirá aquilo que
você chama de experiência sonora, ainda assim, você pensa em português e
o faz mediante um diálogo interno vivenciado através da escuta de sua
própria voz. Ora, se o ato de pensar ocorre através de uma escuta
interna é preciso supor uma separação mínima (mesmo que puramente
abstrata) entre o emissor da voz e o que ouve. Noutras palavras, mesmo o
ato de pensar é, em certa medida, uma experiência externa, sendo o eu
ainda mais íntimo e profundo que os pensamentos. Eu sou. Eu penso. Eu
não sou meus pensamentos. Se assim for poderíamos propor que o "eu real"
difere do "eu empírico", sendo este um Amigo Imaginário daquele. A
necessidade de reafirmação fixa este amigo Imaginário como único
possível, assim, tornamos incontestável a ideia de um eu. O Imaginário
infantil não é tão vaidoso, nem tão egoísta. Criar uma multiplicidade de
eu's, uma turma de amigos imaginários, não ofende o Amigo principal, o
eu Imaginário central. Algo semelhante deve acontecer em patologias
psiquiátricas. Programações ancestrais, de origem genética e efetivação
por vias hormonais e talvez até mecânicas (talvez até o mapa neural
determine esta ou aquela inclinação), atuam como agentes coercitivos
internos, policiais prontos para inibir a emancipação de amigos
imaginários adicionais e garantir a hegemonia de um. Em certas
patologias devem ocorrer afrouxamentos destes mecanismos, falhas na
programação, assim um ou mais amigos imaginários ganham proporções
tamanhas que fica cada vez mais difícil determinar qual o original. Há
original? Se a hipótese do eu empírico ser ele mesmo um amigo Imaginário
qual o critério para definir qual amigo Imaginário, em um cenário
patológico, é o verdadeiro? Não há verdadeiro. Pense em um escritor de
ficção. Qual personagem do livro representa o autor? Uns procurariam
traçar conexões entre ele o protagonista. Outros o reduziriam a mero
observador e narrador, totalmente apartado dos personagens. É necessário
admitir, entretanto, que todos os personagens do livro, sejam eles os
mais valorosos heróis ou os psicopatas de comportamento mais torpe, são
elementos constitutivos do Eu do autor. Não concorda? Pense na mais
sádica ideia que um vilão de contos policiais poderia conceber. Essa
ideia não é dele, é do autor. E se você pensou em algo que nunca leu, a
ideia (e o elemento sádico) é sua. Mas se o autor, a criança e o
psicótico não são alheios aos personagens, mas sim matizes deles, quando
retiramos o elemento "Eu Real" e mantemos apenas os amigos imaginários,
cientes que todos eles se identificam com o Eu, quais critérios usar
para definir qual mais se assemelha ao eu? Paradoxo. Você então proporia
trazemos o Eu de volta e, por comparação, por escalas de semelhança e
diferença, definir o mais próximo. Mas você não tem acesso ao eu real.
Você só conhece o Eu Empírico, o Amigo Imaginário, seja o dos outros,
seja o seu. Ao propor a comparação você simplesmente olharia para a
legião de amigos imaginários, faríamos um deles dar um passo à frente, e
realizaríamos nosso estudo, equivocados desde o princípio. Paradoxo.
Para
ilustrar, imagine-se comparando dinheiro. Cédulas das mais diversas
origens. Você pega cada folha de papel e analisa formato, tamanho,
textura, gramatura, cores, etc., tentando definir qual delas vale mais.
Esquece, porém, que nenhuma vale. Cada uma delas representa um valor em
ouro. Você abraça papéis e despreza o ouro.
Olhando
em outra perspectiva, imagine que cada "eu" possível é um sistema
operacional. Em um PC eu posso instalar quantos sistemas operacionais o
tamanho do HD permitir. Posso criar uma partição para o Windows XP,
outra para o 7, outra para o Linux. O limite, repito, é o tamanho
ocupado pela soma dos sistemas instalados e o espaço de armazenamento.
Agora pergunto: qual o tamanho de cada Eu? Qual o limite do cérebro? São
dados que não temos, mas a experiência deixa claro que o cérebro é
capaz de acumular um imenso número de Eu's sem chegar nem perto dos seus
limites. Centenas para um autor, dezenas para a criança, pelo menos
dois nos casos de "transtorno dissociativo de personalidade", vulgo
"dupla personalidade". De tudo que já supus aqui a questão do "tamanho
do Eu" X "a capacidade do cérebro" é a que menos me interessa sustentar,
mas para simples efeito interpretativo/figurativo, poderíamos inferir
que quanto mais complexos os "Eu's", menor será o seu número.
Não
estou aqui para tratar patologia, mas é importante notarmos que, no
limite, ou todos os estados são patológicos (só deveria haver um eu
empírico) ou nenhum é (importa só o eu real. O número de Eu's
empíricos/amigos imaginários é irrelevante).
*
No primeiro caso fica desnecessário qualquer acréscimo meu; a sociedade
já sabe se acertar nos diferentes níveis de patologia e criar
estratégias para reduzir os possíveis danos que eventuais excessos
possam causar para indivíduos e suas comunidades.
*
O segundo caso, e é este que me interessa, é mais complexo: No interior
da hipótese de que, no limite, nenhum grau de existência e interação
com um ou mais "amigos imaginários" é patológico, devemos compreender
que tanto um quanto centenas destes amigos em nada difere da ausência
dos amigos imaginários, desde quê, é claro, você sem lembre que mesmo na
total supressão dos amigos imaginários restará um, o "eu empírico". O
"pulo do gato" acontece neste ponto. Se aceitarmos a possibilidade de
que até o "eu empírico" é simulado (brincadeira da criança, criação do
autor, ilusão do delirante), necessariamente desejaremos saber se há (e
como acessar) o "Eu Real". Não podemos pensar sobre ele, pois o
pensamento será narrado em português, ouvido com nossa voz e produzido
pelo "eu empírico" que estávamos tentando suprimir. Disto deriva que não
podemos conceitualizá-lo, racionalizá-lo, descrevê-lo. Só nos resta a
estratégia bergsoniana da intuição. Não posso te ensinar o conhecimento
que tenho (não verdade não o tenho, portanto, nem para mim mesmo eu
posso ensiná-lo), mas posso apontar caminhos pelos quais espero que você
(e eu), por conta própria, possa(mos) intuir este novo conhecimento.
Imagine-se
recém saído do ventre materno. Você ainda não adquiriu o idioma,
portanto, ainda não construiu o "eu empírico" (pelo menos não nos moldes
que o conhecemos na vida adulta). Tudo que você sabe sobre o mundo é
aquilo que lhe trazem os dados imediatos dos sentidos. Ninguém te
ensinou a imaginar. Noutras palavras, nada de criança, nem de autor, nem
de dissociação patológica (espera-se). Você é o puro eu real. Em sua
mente você é puro ímpeto. Mistura indefinível de "Quero" e "Não quero"
sem a menor noção de "Posso" e "Não posso". Indefinível porque não
existe o gesso da palavra falada "quero isto", "não quero aquilo",
apenas o sentimento do desejo e repulsa. Em choque com isto está o
corpo, prisão de sua mente. Esta, pura liberdade, aquele, pura
limitação. Você não dá um passo sozinho. Não tem força nem coordenação
para obter ou afastar nada que queira ou não queira. Com o tempo você
adquire noção do espaço e força para empurrar algo, ao mesmo tempo que
adquire a língua para evocar alguém "Paaa paaa paaa paaa" (foi assim que
meu filho esboçou seu primeiro "Papai"). O mundo interno mancha o
externo com algumas cores de liberdade, assim como o externo lança para
dentro um pouco das cinzentas limitações. A plenitude do "eu real",
inefável que é, precisa ser traduzida em um "eu empírico", linguístico,
que seja capaz de interagir com este universo externo, repleto de "eu's
empíricos". O "eu real" deixa de ser solitário, ganhou um amigo, o "eu
empírico". Sendo dois, falam no plural "Façamos outros "eu's" à nossa
imagem e semelhança!". Nasce um universo e os povos que o habitam.
Amigos imaginários. Paradoxos.
Os desdobramentos desta brincadeira conceitual vão depender do alcance que desejarmos lhes permitir.
Em
perspectiva puramente pragmática são irrelevantes (em perspectiva
meramente pragmática ninguém nunca teria proposto esta discussão).
Em
perspectiva psicanalítica o "eu empírico" coincidiria com o ego,
enquanto o "eu real" seria o Id. A novidade seria a mudança de foco.
Trabalha-se no ego esperando que Id e super ego não atrapalhem.
Pragmatismo clínico. Uma nova psicanálise trataria ego, super ego e
multiplicidade destes como construtos necessários para a vida social,
mas limitadores da criatividade humana e da existência intelectual. Ela
perseguiria o Eu Real e, embora não expurgasse os amigos imaginários,
que são os embaixadores entre os universos distantes que somos cada um
de nós, o devolveria ao seu lugar central. Origem e fim de toda a
criatividade humana.
Em
perspectiva filosófica materialista daríamos um passo para trás e
retornaríamos à psicanálise tradicional, queixando-nos da perda de tempo
e ausência de novidade do presente diálogo.
Em
perspectiva Metafísica -Ah a Metafísica- teríamos tanto para conversar.
Mas não hoje. Hoje quero deixar a pergunta: Dentro deste "Paradoxo do
Amigo Imaginário" estamos supondo que o "eu empírico" (e eventuais
amigos imaginários adicionais) é (são) construção(ões) complexa(s) de um
"eu real" ainda insondado (espero que não insondável). Seria, talvez, a
multiplicidade de "eu's reais" que caminham por este mundo (quiçá por
este Universo) um complexo emaranhado de amigos imaginários de um Eu
Real primordial, externo a todos nós mas do qual todos nós somos parte?
Paradoxo.
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