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quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Comunhão (ou "Como me tornei vegano")


Desde que me tornei budista venho flertando, timidamente, com o vegetarianismo, porém, como o budismo que eu prático não determina esta prática -algo realmente cômodo para mim- continuei me lançando sobre picanhas, costelinhas e companhia.
Tempos depois comecei a ler a respeito do hinduísmo, sobretudo Krishna, e, obviamente, seus adeptos são vegetarianos. Como não me converti ao hinduísmo -cômodo para mim, não?- continuei me lançando sobre picanhas, costelinhas e companhia. Há pouco tempo vi matérias em mídias sociais comparando quantas pessoas a carne de um bovino alimenta e a multidão que poderia ser alimentada com os recursos consumidos para criar este único animal. Pela primeira vez a ideia do vegetarianismos fez sentido lógico para mim, ultrapassando as enevoadas e românticas justificativas dadas pelas religiões e entusiastas, porém, como a mudança era radical demais, não queria forçar minha família a mudar comigo, sobretudo onerar minha esposa com o preparo de refeições distintas por uma causa que ela sequer abraçara - cômodo (e o resto você sabe. Picanha, sushi e etc.).
Para ser justo a época de minha vida que mais cheguei perto das corretas práticas alimentares - conforme budistas tradicionais e hinduístas acreditam que são- foi em meu passado cristão, período no qual anualmente eu rompia com a carne em observação à quaresma. Ironias da vida: estive mais próximo dos deuses não cristãos enquanto estive sob orientação do deus cristão. Mas, ora, qual o nome de Deus? (Leia Milagre Eucarístico)
O texto de hoje fala sobre conversão, alimentação, culto e comunhão, mas não é um texto católico, budista ou hinduísta. Nesta semana (última semana de setembro de 2017) minha esposa teve contato com um vídeo chamado "A carne é fraca", produção muito sagaz e convincente que demonstra, sem romantismo, o quão terrível e insustentável é o modelo de produção (melhor seria ter dito "modelo de destruição") que todos nós incentivamos apenas para atender nosso torpe e impensado prazer sensorial. Se você é religioso entenda: VOCÊ sustenta o mais terrível e cruel sistema de tortura jamais concebido. Não são meros maus tratos (como se isso fosse aceitável). É tortura ininterrupta desde o nascimento até a morte daquela inocente "criaturinha de Deus". Se você não é religioso, melhor. Meu amigo, SEU desejo quase libidinoso por baby beef financia o mais expansivo e catastrófico sistema de devastação e poluição da atualidade. Esqueça o medo de vazamento nuclear, carros mal regulados, indústrias e afins. A bomba H é acionada pela direção na qual você decide apontar o seu garfo. Esqueça essa palhaçada de abraçar árvore centenária na vila Mariana, xingar madeireiro na Amazônia, praguejar contra os baleeiros chineses. Você quer realizar uma ação concreta pelo fim do desmatamento na região amazônica, salvar os rios poluídos em Santa Catarina, reduzir o desemprego no centro-oeste e até mesmo combater a fome na África? Boicote o açougue.
Mas este ainda não é o ponto. Quero falar de comunhão. Não aquela realizada em cultos nos quais pessoas que não se suportam fingem amar-se porque o padre está olhando (sei que na sua comunidade não é assim. Fique tranquilo. Ouvi dizer que aconteceu uma vez em um grupo lá para as bandas do Piauí). Uma comunhão concreta e profunda que experimentei, embora silenciosa e não agendada. Como eu disse minha esposa viu o vídeo e abraçou a causa. As mulheres! Estas heroínas tantas vezes anônimas não raro são a força propulsora de grandes revoluções. Estou abraçando por ela e com ela, mas também por mim, em eco às minhas aspirações espirituais e inclinações intelectuais. Ainda há muita carne no freezer e muito leite longa vida no armário. Estamos migrando.
Eu levo marmita para o trabalho. Hoje comi frango, mas na última terça feira não levei marmita. Não houve tempo de preparar algo. Quando não levo marmita almoço em um dos não poucos restaurantes por quilo nas adjacências do meu trabalho. Lembrei-me, então, que meses atrás um amigo da época da faculdade publicou no facebook uma notícia sobre um restaurante de comida vegana na Consolação. Caminhei até o local. Almoço a vontade por R$ 10,00 às segundas e R$ 15,00 de terça a sexta. Por mais R$ 4,00 você tem chá mate à vontade. Comi. Gostei. Não morreria se vivesse disto. Não morrerei. Mas não quero falar de encanto pela comida, suas particularidades, sabores. Quero falar de comunhão. Quero falar o evento que foi ter estado lá. Somos vermes. Nos portamos como vermes. Passamos horas de nossos dias anestesiados, quase sonâmbulos, derramando irrefletidamente todo tido de alimento goela abaixo, extasiados pelos sabores, enlouquecidos por mais. Café da manhã, almoço, janta, sobremesas, docinhos no decorrer do expediente, tudo no piloto automático, tudo sem estar lá. Você não vive aquele momento, você apenas o engole. A refeição não significa nada. É tão vazia quanto um ato sexual com um estranho. Pode te satisfazer na hora mas o vazio, a fome, o desejo, retornam em seguida e o indivíduo parte em busca do próximo estranho, da próxima refeição. Não terça feira. Não no restaurante de comida vegana na Consolação. Estive em um culto, embora as pessoas ali não fossem fanáticas de forma alguma. Havia ali pessoas de todos os tipos: bicho-grilos, roqueiros, gente com cara te artista plástico, pessoas normais ("pessoa normal": pessoa sem característica específica que possibilite incluí-la em algum grupo interessante. risos) e executivos (grupo propositalmente separado dos grupos interessantes e das pessoas normais. risos 2). Havia apenas três mandamentos, escritos em "folders" distribuídos sobre as mesas: "Nossos melhores clientes a)compartilham a mesa b)retiram os pratos c)não desperdiçam comida.". Fui colocado à mesa com dois estranhos. Não sou simpático. Não me apresentei e não conversei com eles. Não importa. Fui grato por me aceitarem ali. Eles apenas não rejeitaram minha chegada, comportamento que provavelmente seria similar em qualquer outro restaurante, mas com o ar daquele ambiente foi mais significativo, afinal, eu não teria vivido aquela refeição em outro lugar, apenas engolido. 
Estar naquele restaurante foi um ato racional e consciente de escolha do que comer e porquê comer. Disto derivou o mágico acontecimento de tornar consciente o próprio ato de comer, antes quase ignorado, literalmente atropelado. Escolhi aquele lugar e aquela comida em detrimento doutros por razões bem específicas e então fui tomado pela consciência de que todos os meus adjacentes haviam realizado a mesma operação. Comunhão. Pessoas com os históricos e visões de mundo mais distintos reunidos por pelo menos um valor em comum, uma ideia, comprometidos em, naquele ato simples de comer conscientemente, poupar o animal da tortura, salvar a árvore do corte, reduzir no solo, no ar e nos rios as mais várias formas de poluição e possibilitar aos cidadãos do mundo alimentação digna. Comunhão. Foi um momento profundo, digno, místico, com pessoas comprometidas com algo maior, pelo bem de outros, de estranhos, sem o mais ínfimo desejo de retribuição a não ser o prazer intrínseco ao ato e ao seu significado. Comunhão. Eu compartilhei a mesa e os desejos. Retirei os pratos e os apegos. Não desperdicei comida e certamente não perdi meu tempo. Comunguemos.

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