Um dos eventos mais bonitos e
significativos dos rituais católicos (e agora me parece que fui infeliz ao
dizer "um dos". Seria mais adequado "o") é o milagre
eucarístico. Este evento ímpar, lamentavelmente omitido pela comunidade protestante
(ônus incomensurável para eles), seja simbólico, seja concreto (dentro da
mitologia católica a hóstia consagrada não representam a divindade, ela é.
"Eu Sou!"), põe ao alcance do crente uma profunda identidade e
intimidade com o ente divino, mesmo que por alguns instantes.
Já não sou católico (nem
cristão) há muito tempo, não obstante, não sou menos capaz de reconhecer a
beleza deste ritual. Hoje sou budista e, como tal, sou facilmente confundível
com um ateu. A grande diferença é que não expurgamos a divindade, apenas assumimos
para nós a responsabilidade pela emancipação espiritual que o cristão delega à
divindade ("eu pedi para Deus me fazer santo. Se ainda não aconteceu foi
pela sabedoria Dele."). O presente texto, porém, não se destina à crítica
aos cristãos nem à apologia ao budismo. Será mal visto, inclusive, por ambos,
pois os transcende recorrendo à mitologia que lhes é anterior, a cultura
Vaishnava. Vishnu ou Krishna (a maioria dos textos apresenta este como avatar
daquele, que é supremo. Outros [os que mais me agradam] apresentam este como
suprema personalidade de Deus, sendo aquele uma das suas infinitas
manifestações. A grande beleza desta mitologia é que tanto faz) não é uma
divindade ciumenta como em outras religiões. Pelo contrário, recebe feliz e
paciente todas as ofertas e preces feitas às outras divindades, hindus ou não,
porque sabe que no fim são para ele. Minha lógica interna (não necessariamente
lógica, se avaliada com rigor acadêmico) me obriga a ler esta divindade como a
mais coerente dentre aquelas às quais fui apresentado no decorrer de minha
vida. Se existir uma divindade deve ser como Krishna, ainda que não se chame
Krishna, Vishnu ou Javé. Qual língua humana seria capaz de pronunciar o
verdadeiro nome de Deus? Ciente disto digo "Krishna" sem constrangimento.
Sem medo de errar, pois qualquer escolha está errada. Todas estão aquém do
impronunciável à língua e insondável ao intelecto. E se eu, mortal, sou capaz
de compreender isto, um Deus que não o compreenda não é um Deus. "Não
evoquem outros nomes. São falsos nomes, falsos deuses, demônios.". Se eu
fosse Krishna (e Eu Sou, você verá em seguida) me deleitaria com a imensa
criatividade humana em elaborar artifícios para se reencontrar comigo. Saudade!
Feita esta introdução
-lembrando, sou budista, logo, quase ateu, porém, simpatizante de Krishna-
preciso dizer que frequentemente dialogo com Krishna. Seus devotos procuram
divulgar um conceito chamado "consciência de Krishna" o qual, em
livre leitura (minha, portanto, provavelmente equivocada) consistiria em
desenvolver a inclinação, hábito e prática de manter-se o tempo todo consciente
da presença de Krishna em tudo. Krishna é e está em tudo. (Lembre-se do Rauzito
na canção chamada - não por acaso- Gita: "Mas saiba que estou em você. Mas
você, não está em mim."). O exercício consistiria (lembrando, minha
interpretação. Um Hare-Krishna autêntico poderia esclarecer que estou falando
abobrinha) no constante pensar em Krishna, constante gratidão a ele e constante
reconhecimento da presença dele em tudo. As coisas não representam Krishna,
tampouco destacaram-se dele, todas elas são Krishna, ainda que ele se mantenha
também externo, independente e inteiro ("Eis o mistério da fé.").
Ontem, voltando do trabalho, ao
sair da catraca do trem dobrei à esquerda na passarela que passa por cima de
uma importante via de São Paulo. Bem à minha frente, uns 20 graus acima do
horizonte, uma estrela me observava. Converso com ela reconhecendo a presença
da divindade nela (não confunda com idolatria. Não converti a estrela em Deus.
Sei que estava olhando para luz de um passado remoto). Não foi a primeira vez
que fiz isto. Reconheço Krishna nesta estrela, numa árvore que todas as manhãs
me saúda adjacente à mesma passarela e em tudo mais. Mas ontem foi diferente.
Revivi o milagre eucarístico de meus tempos de católico. Não confunda com
nostalgia daquela época. Pelo contrário. Fundei uma nova época. O milagre
eucarístico momentâneo do Deus na hóstia expandiu-se para um milagre perene de
Deus em tudo. Comunguei. Eu não sei sua religião e não me importa. Não sei o
nome do seu Deus ou se você o reduz a uma lei. Reconheça o divino que tudo
permeia. Não importa nem se você é ateu. A beleza da existência não é menor
porque você refuta uma eventual origem metafísica. Todos juntos, reconheçamos a
beleza do Milagre Eucarístico que a existência simplesmente é.
Na mitologia judaico/cristã a
divindade sempre se apresenta como "Eu Sou". Reconheçamos o gérmen
divino que nos permeia a todos. Eu sou. Eu sou Krishna. Nós somos Krishna.
Origem e fim de todo o nosso potencial criativo. Desfrutadores supremos da
existência. Deleitemo-nos com a suprema beleza ao nosso redor (não por acaso
"Krishna" significa "o todo atraente"). Você é ateu? Ainda
assim aí está a maravilha da existência. Sem misticismo. Tudo funcionando com
perfeição pelas forças atrativas que possibilitam a existência, Gravidade,
eletromagnetismo, força forte, força fraca. Krishna (O todo atraente). Somos
criadores supremos, mantenedores supremos, destruidores supremos, trindades
inteiras de nosso universo interior e de nossas adjacências, portanto, de nossa
realidade. Reconheçamo-nos cocriadores deste milagre que nos cerca e permeia.
Comunguemos.
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