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quarta-feira, 18 de outubro de 2017

O sopro vital do Eterno

Eu já li o Bhagavad Gita duas vezes e ontem (17/10/2017) iniciei a segunda leitura dos Upanishads (Editora Pensamento). Cada vez que revisito um destes textos sinto-me lendo algo totalmente inédito, dada a imensa variedade de novas compreensões e significados que encontro.

Antes disto (em 16/10) saí mais cedo do trabalho e me coloquei a caminho do hospital, onde encontraria minha esposa e filho, este levado por aquela para consulta. Para chegar lá costumo ir até certa estação de metrô e vencer o resto do caminho (8 ou 10 quarteirões) a pé. Quando caminho (e quando sento, quando deito, quando como, etc.) costumo refletir sobre a existência. Antes disto (data desconhecida. Já faz tempo) eu soube que os vaishnavas (talvez toda a comunidade hinduísta. Não sei) procuram alimentar-se exclusivamente de prasadam. Prasadam é alimento santificado ou espiritualizado, ou seja, alimento oferecido a Deus (algo diferente da simples gratidão e repleto de significado) antes de ser comido. "Quem não oferece o alimento a Deus (ouvi certa vez) se alimenta de roubo.". Obviamente um teísta deve compreender (ou crer) que tudo pertence à divindade, portanto, comer sem antes oferecer (com efeito, reconhecer a propriedade divina sobre aquela refeição) equivale a tomar sem pedir ou merecer. Ora, enquanto subia rumo ao hospital pensava em prasadam e em prana. Pranam na cultura védica refere-se ao "alento", ao "fôlego" (parece-me haver outros significados, mas para este texto atentemo-os a este). Notei então que o simples ato de respirar também é uma usurpação, tomando irrefletidamente (levianamente, se você pensar no que fazemos com este mesmo ar enquanto não o respiramos) aquilo que não nos pertence e é ininterruptamente produzido (ok. Renovado) e distribuído sobre este planeta. Pensei, então, que o próprio ar deve ser oferecido (de fato, ter sua real propriedade reconhecida) antes de ser inalado. Ora, comemos em média três vezes ao dia, mas respiramos o tempo todo. Na refeição o oferecimento (o reconhecimento da posse de Deus) deve ser a cada garfada ou basta uma vez, durante o preparo e/ou na iminência do ato de comer? E na respiração? O crente deveria reconhecer a propriedade de Deus sobre o ar a cada aspiração ou bastaria uma única vez? Sempre ao acordar, por exemplo. É preciso reconhecer que, fisiologicamente, todas as aplicações internas (ou boa parte. Não sou biólogo) dos nutrientes estão intimamente ligadas à presença do oxigênio em suas reações. Disto deriva, penso, que não requer muito esforço reconhecer a respiração como parte essencial da alimentação. Prasadam.
Os praticantes da chamada "Consciência de Krishna", também conhecidos como os "Hare Krishna", tem como propósito, creio, manterem-se a maior parte do tempo conscientes da presença e íntima participação, atuação e propriedade de Krishna em cada fenômeno, evento e ente no mundo. Parece-me, então, não haver conflito no reconhecimento de prana como prasadam e a prática (e busca) da consciência de Krishna. A misericórdia imotivada (imerecida) está ao lado, em cada nova respiração.
Esta foi a reflexão da segunda-feira. Senti-me particularmente grato (e agraciado) ao reabrir os Upanishads na manhã da terça e descobrir que (embora a tradução de "Upanishad" seja outra) o sobrenome que recebem na capa do livro (subtítulo) é "Sopro Vital do Eterno". Evento místico ou pura coincidência? Não importa. Na verdade, uma interpretação sequer expurga a outra. Um evento aleatório, mesmo que não produzido ativamente pela divindade (se é que isso é possível) foi, no mínimo, autorizado por ela, mesmo sabendo da interpretação que eu daria. No fim dá no mesmo.
Nos Upanishads os anônimos ríshis nos transmitem o inspiradíssimo conhecimento que obtiveram. Então me pergunto se aqueles pequenos insights obtidos nos raros e curtos momentos de iluminação do budista, de êxtase contemplativo do cristão, da reflexão atenta do filósofo, não seriam experiências análogas às vividas pelos ríshis, todas elas oriundas do sopro vital do eterno. O objeto de devoção do budismo que eu prático consiste em um pergaminho com diversos nomes em japonês. Um deles, se traduzido, é Brahma. Embora o budista contemporâneo não se apresente como devoto de divindades, apenas da Lei, mantém-se horas em frente a este pergaminho ratificando pelo mantra a sua devoção à Lei. Os ríshis também apresentam Brahma (Brahman no livro), mas ali ele é o ente e objetivo supremo em si. Já quando lemos (eu ouvi o audiobook) sobre a vida de Krishna, Brahma o encontra e o reconhece como origem de tudo, sendo o próprio Brahma um avatar. Nos textos cristãos o verbo era Deus e habitou entre nós. Finalmente (decisivamente) no Gita Krishna se apresenta e, ao contrário dos deuses ciumentos de outras religiões, reconhece todas as ofertas a qualquer divindade como dirigida a Ele. Um Deus esclarecido. Embora o nome Krishna seja o que mais me atraia (um dia você sacará o trocadilho), há de se perceber que Krishna, Brahma, Javé e mesmo Lei Mística são pálidas tentativas de nomear e descrever o inefável. Delimitar dentro de nossa parca compreensão Aquele que segura o infinito entre o polegar e o indicador. Tratar em termos gerais aquilo que só pode ser compreendido e partilhado entre budas (Sutra de Lótus). Disto deriva então que talvez nossas religiões não sejam afinal indissociáveis, sendo então níveis/escalas distintos de uma mesma experiência mística e/ou evolução espiritual, culminando então na consciência ininterrupta, a cada ação, pensamento, palavra, refeição, meditação, prece e respiração, da realidade, presença e ação do Ser Originário. Consciência de Krishna.

Percebo então que os ríshis anônimos dos vedas não estão sozinhos; há ríshis heterônomos na Bíblia, no Torá, Alcorão, missas e cultos; ríshis autônomos nos sutras, mantras, reuniões de palestras, daimokus e shakubukus; ríshis ateus nas academias, simpósios, laboratórios e colóquios. Todos movidos pelo mesmo sopro vital do eterno, vendo em parte o que depois verão face a face (Carta aos Corintios). "…em todos os tempos, quando queria elevar-se a seu alvo magicamente atraente, transpondo as cercas da experiência. Sobre leves esteios, ela (no original, a Filosofia, eu, porém, refiro-me aos filósofos) salta para diante: a esperança e o pressentimento põem asas em seus pés!" (Nietzsche). No fim, para muito além de todos os doutores da lei (hebraica e de outras doutrinas) e dos doutores da carreira acadêmica o sopro vital do eterno confiou o fundamento da revelação do Gita aos simples (às vezes semianalfabetos) corações daquelas senhoras que varrem as calçadas das paróquias: "assim como todos os rios levam ao mar todos os caminhos levam a Deus!". Há caminhos bem mais longos que outros (uns até interrompidos por barragens ou estio), uns tortuosos, outros diretos, mas todos (na verdade, a maior parte) a caminho. Se não forem rios nem caminhos, ainda assim somos nós sementes. Ora pesados caroços de abacate. Ora suaves dentes de leão. Se formos leves poderemos seguir com o sopro vital. Se nos sentarmos devotamente para aprender (procure o significado de Upanishad), seremos os próprios ríshis.

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