Eu já li o Bhagavad Gita duas vezes e
ontem (17/10/2017) iniciei a segunda leitura dos Upanishads (Editora
Pensamento). Cada vez que revisito um destes textos sinto-me lendo algo
totalmente inédito, dada a imensa variedade de novas compreensões e
significados que encontro.
Antes disto (em 16/10) saí mais cedo do
trabalho e me coloquei a caminho do hospital, onde encontraria minha esposa e
filho, este levado por aquela para consulta. Para chegar lá costumo ir até
certa estação de metrô e vencer o resto do caminho (8 ou 10 quarteirões) a pé.
Quando caminho (e quando sento, quando deito, quando como, etc.) costumo
refletir sobre a existência. Antes disto (data desconhecida. Já faz tempo) eu
soube que os vaishnavas (talvez toda a comunidade hinduísta. Não sei) procuram
alimentar-se exclusivamente de prasadam. Prasadam é alimento santificado ou
espiritualizado, ou seja, alimento oferecido a Deus (algo diferente da simples
gratidão e repleto de significado) antes de ser comido. "Quem não oferece
o alimento a Deus (ouvi certa vez) se alimenta de roubo.". Obviamente um
teísta deve compreender (ou crer) que tudo pertence à divindade, portanto,
comer sem antes oferecer (com efeito, reconhecer a propriedade divina sobre
aquela refeição) equivale a tomar sem pedir ou merecer. Ora, enquanto subia
rumo ao hospital pensava em prasadam e em prana. Pranam na cultura védica
refere-se ao "alento", ao "fôlego" (parece-me haver outros
significados, mas para este texto atentemo-os a este). Notei então que o
simples ato de respirar também é uma usurpação, tomando irrefletidamente
(levianamente, se você pensar no que fazemos com este mesmo ar enquanto não o
respiramos) aquilo que não nos pertence e é ininterruptamente produzido (ok.
Renovado) e distribuído sobre este planeta. Pensei, então, que o próprio ar
deve ser oferecido (de fato, ter sua real propriedade reconhecida) antes de ser
inalado. Ora, comemos em média três vezes ao dia, mas respiramos o tempo todo.
Na refeição o oferecimento (o reconhecimento da posse de Deus) deve ser a cada
garfada ou basta uma vez, durante o preparo e/ou na iminência do ato de comer?
E na respiração? O crente deveria reconhecer a propriedade de Deus sobre o ar a
cada aspiração ou bastaria uma única vez? Sempre ao acordar, por exemplo. É
preciso reconhecer que, fisiologicamente, todas as aplicações internas (ou boa
parte. Não sou biólogo) dos nutrientes estão intimamente ligadas à presença do
oxigênio em suas reações. Disto deriva, penso, que não requer muito esforço
reconhecer a respiração como parte essencial da alimentação. Prasadam.
Os praticantes da chamada
"Consciência de Krishna", também conhecidos como os "Hare
Krishna", tem como propósito, creio, manterem-se a maior parte do tempo
conscientes da presença e íntima participação, atuação e propriedade de Krishna
em cada fenômeno, evento e ente no mundo. Parece-me, então, não haver conflito
no reconhecimento de prana como prasadam e a prática (e busca) da consciência
de Krishna. A misericórdia imotivada (imerecida) está ao lado, em cada nova
respiração.
Esta foi a reflexão da segunda-feira.
Senti-me particularmente grato (e agraciado) ao reabrir os Upanishads na manhã
da terça e descobrir que (embora a tradução de "Upanishad" seja
outra) o sobrenome que recebem na capa do livro (subtítulo) é "Sopro Vital
do Eterno". Evento místico ou pura coincidência? Não importa. Na verdade,
uma interpretação sequer expurga a outra. Um evento aleatório, mesmo que não
produzido ativamente pela divindade (se é que isso é possível) foi, no mínimo,
autorizado por ela, mesmo sabendo da interpretação que eu daria. No fim dá no
mesmo.
Nos Upanishads os anônimos ríshis nos
transmitem o inspiradíssimo conhecimento que obtiveram. Então me pergunto se
aqueles pequenos insights obtidos nos raros e curtos momentos de iluminação do
budista, de êxtase contemplativo do cristão, da reflexão atenta do filósofo,
não seriam experiências análogas às vividas pelos ríshis, todas elas oriundas
do sopro vital do eterno. O objeto de devoção do budismo que eu prático
consiste em um pergaminho com diversos nomes em japonês. Um deles, se
traduzido, é Brahma. Embora o budista contemporâneo não se apresente como
devoto de divindades, apenas da Lei, mantém-se horas em frente a este
pergaminho ratificando pelo mantra a sua devoção à Lei. Os ríshis também
apresentam Brahma (Brahman no livro), mas ali ele é o ente e objetivo supremo
em si. Já quando lemos (eu ouvi o audiobook) sobre a vida de Krishna, Brahma o
encontra e o reconhece como origem de tudo, sendo o próprio Brahma um avatar.
Nos textos cristãos o verbo era Deus e habitou entre nós. Finalmente
(decisivamente) no Gita Krishna se apresenta e, ao contrário dos deuses
ciumentos de outras religiões, reconhece todas as ofertas a qualquer divindade
como dirigida a Ele. Um Deus esclarecido. Embora o nome Krishna seja o que mais
me atraia (um dia você sacará o trocadilho), há de se perceber que Krishna,
Brahma, Javé e mesmo Lei Mística são pálidas tentativas de nomear e descrever o
inefável. Delimitar dentro de nossa parca compreensão Aquele que segura o
infinito entre o polegar e o indicador. Tratar em termos gerais aquilo que só
pode ser compreendido e partilhado entre budas (Sutra de Lótus). Disto deriva
então que talvez nossas religiões não sejam afinal indissociáveis, sendo então
níveis/escalas distintos de uma mesma experiência mística e/ou evolução
espiritual, culminando então na consciência ininterrupta, a cada ação,
pensamento, palavra, refeição, meditação, prece e respiração, da realidade,
presença e ação do Ser Originário. Consciência de Krishna.
Percebo então que os ríshis anônimos dos
vedas não estão sozinhos; há ríshis heterônomos na Bíblia, no Torá, Alcorão,
missas e cultos; ríshis autônomos nos sutras, mantras, reuniões de palestras,
daimokus e shakubukus; ríshis ateus nas academias, simpósios, laboratórios e
colóquios. Todos movidos pelo mesmo sopro vital do eterno, vendo em parte o que
depois verão face a face (Carta aos Corintios). "…em todos os tempos,
quando queria elevar-se a seu alvo magicamente atraente, transpondo as cercas
da experiência. Sobre leves esteios, ela (no original, a Filosofia, eu, porém,
refiro-me aos filósofos) salta para diante: a esperança e o pressentimento põem
asas em seus pés!" (Nietzsche). No fim, para muito além de todos os
doutores da lei (hebraica e de outras doutrinas) e dos doutores da carreira
acadêmica o sopro vital do eterno confiou o fundamento da revelação do Gita aos
simples (às vezes semianalfabetos) corações daquelas senhoras que varrem as
calçadas das paróquias: "assim como todos os rios levam ao mar todos os
caminhos levam a Deus!". Há caminhos bem mais longos que outros (uns até
interrompidos por barragens ou estio), uns tortuosos, outros diretos, mas todos
(na verdade, a maior parte) a caminho. Se não forem rios nem caminhos, ainda
assim somos nós sementes. Ora pesados caroços de abacate. Ora suaves dentes de
leão. Se formos leves poderemos seguir com o sopro vital. Se nos sentarmos
devotamente para aprender (procure o significado de Upanishad), seremos os
próprios ríshis.
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